"A 5 léguas de Gonçalo Marques parei na fazenda do comandante de Meia-Ponte, Joaquim Alves de Oliveira, para quem o governador da província me tinha dado uma carta de recomendação, tendo nessa ocasião feito grandes elogios a ele. A acolhida que me deu foi perfeita, e passei alguns dias em sua propriedade.
Joaquim Alves de Oliveira amealhara à custa do próprio esforço a sua fortuna, que era considerável. Tinha sido educado por um jesuíta, e parece que absorvera nessa escola o espírito metódico e equilibrado que o fazia sobressair entre os seus compatriotas. A princípio dedicou-se ao comércio, mas como tinha mais pendor para a agricultura, acabou por renunciar quase que inteiramente aos seus interesses mercantis. Não obstante, entregava-se ainda a transações comerciais quando esperava poder obter um lucro razoável. Assim, por ocasião de minha passagem por ali ele tinha acabado de enviar o genro a Cuiabá com uma numerosa tropa carregada de mercadorias variadas. Tinha, porém, o hábito de jamais falar com quem quer que fosse sobre os seus negócios, e ninguém ficava sabendo quando ele ganhava ou perdia dinheiro nas suas transações. Entre os brasileiros que conheci, era ele, talvez, o que tinha mais aversão à ociosidade. "Concedo a meus hóspedes", dizia-me ele sorrindo, "três dias de descanso. Ao cabo desse tempo, porém, descarrego sobre eles uma parte dos serviços da casa". As conversas de Joaquim Alves revelavam que ele era dotado de um grande amor à justiça e de uma religião sem mesquinhez. Era homem de muito senso, de uma grande simplicidade e de uma bondade extrema.
A fazenda, fundada por ele, nunca tivera outro nome a não ser o seu. Tratava-se, inegavelmente, da mais bela propriedade que havia em toda a região de Goiás que eu tinha percorrido. Reinavam ali uma limpeza e uma ordem que eu ainda não vira em nenhuma outra parte. A casa da fazenda era ao rés do chão e nada tinha de extraordinária, mas era ampla e muito bem conservada. Na frente, uma extensa varanda oferecia sombra e ar fresco em todas as horas do dia. O engenho-de-açúcar, conjugado à casa, fora construído de maneira que, da sala de jantar, pudesse ser visto o trabalho que se fazia junto às caldeiras, e da varanda, o que se passava no moinho de cana. Este último dava para um pátio quadrado. O corpo da casa se prolongava numa série de construções, que formavam um dos lados do pátio, nas quais estavam instaladas a selaria, as oficinas do serralheiro, do sapateiro, a sala dos arreios e, finalmente, a cocheira. Outro lado era construído pelos alojamentos dos escravos casados. Esses alojamentos eram cobertos de telhas e divididos em cubículos por paredes até certa altura. Um muro de adobe fechava os dois lados restantes do pátio.
A casa fora organizada desde o princípio com tamanha perfeição que o seu proprietário já não tinha, por assim dizer, necessidade de dar nenhuma ordem. Cada um sabia o que tinha de fazer e tratava de se colocar no seu posto de trabalho por sua própria conta. Para se fazer entender, bastava ao dono, se quisesse, dizer apenas uma palavra ou fazer um simples gesto. No meio de uma centena de escravos não se ouviam ordens gritadas nem se viam homens apressados andando de um lado para o outro, apenas aparentando grande atividade, mas na verdade sem saberem o que fazer. Em toda parte reinavam o silêncio, a ordem e uma tranqüilidade que se harmonizava perfeitamente com a que a Natureza costuma oferecer naqueles climas amenos. Dir-se-ia que um gênio invisível governava a casa. Seu proprietário ficava sentado tranquilamente na varanda, mas era fácil ver que nada lhe escapava e que bastava um rápido olhar para manter tudo sob controle.
As regras estabelecidas por Joaquim Alves quanto ao tratamento dado aos escravos consistiam em mantê-los bem alimentados e vestidos decentemente, em cuidar deles adequadamente quando adoeciam e em jamais deixá-los ociosos. Todo ano ele provia o casamento de alguns, e as mães só iam trabalhar nas plantações quando os filhos já podiam dispensar os seus cuidados. As crianças eram então confiadas a uma só mulher, que zelava por todas. Uma sábia precaução fora tomada para evitar, tanto quanto possível, as ciumadas e as brigas: os quartos dos solteiros ficavam situados a uma boa distância dos alojamentos dos casados.
O domingo pertencia aos escravos. Eles não tinham permissão para ir procurar ouro, mas recebiam um pedaço de terra que podiam cultivar em seu próprio proveito. Joaquim Alves instalara em sua própria casa uma venda onde os negros podiam comprar as coisas que geralmente são do agrado dos africanos. Nas suas transações o algodão fazia o papel do dinheiro. Dessa maneira ele livrava os escravos da tentação do roubo, estimulava-os ao trabalho acenando-lhes com os lucros de suas lavouras, fazia com que se apegassem ao lugar e ao seu senhor, ao mesmo tempo que aumentava a produção de suas terras.
Durante minha permanência na casa do comandante de Meia-Ponte visitei as várias dependências de sua fazenda, o chiqueiro, o paiol, o moinho de farinha, o local onde era ralada a mandioca e onde ficava instalada a máquina de descaroçar o algodão, a fábrica de fiação, etc. etc., e em toda parte encontrei uma ordem e uma limpeza incomparáveis. Os fornos do engenho-de-açúcar não tinham sido feitos de acordo com as especificações da técnica moderna. Seu aquecimento era feito pelo lado de fora, o que pelo menos tornava menos penosa para os trabalhadores a operação de cozimento. Um tambor horizontal movido a água punha em movimento doze pequenas máquinas de descaroçar algodão. Era também a água a máquina de ralar mandioca, da qual darei aqui uma descrição. A casa onde se achava instalada era construída sobre estacas e embaixo do assoalho fora colocada uma roda em posição horizontal, que era movida pela água que caía de uma calha em plano inclinado. O eixo da roda atravessava o assoalho e se elevava até certa altura, tendo na extremidade outra roda horizontal cujo aro era revestido por um ralo de metal. O eixo e a roda superior ficavam encaixados dentro de um quadrado formado por quatro estacas,cada uma das quais tinha uma chanfradura na parte interna, ao nível do ralo. Quando a roda começava a girar, quatro pessoas seguravam as mandiocas, encaixando-as nas chanfraduras. Tendo esse ponto de apoio, seus braços podiam manter-se firmes e a ação da máquina não sofria interrupção.
Numa parte de suas terras o comandante de Meia-Ponte tinha deixado de lado o método primitivo adotado geralmente pelos brasileiros em suas lavouras. Passara a usar o arado e adubava a terra com o bagaço da cana. Dessa forma não havia necessidade de queimar novas matas todo ano. A cana era replantada sempre no mesmo terreno, que ficava situado perto da casa para facilitar a supervisão do dono e poupar tempo aos escravos. O açúcar e a cachaça eram vendidos em Meia-Ponte e Vila Boa, mas o algodão era exportado para o Rio de Janeiro e Bahia. Joaquim Alves foi o primeiro, como já disse, a demonstrar a vantagem dessas exportações, e seu exemplo foi seguido por vários outros colonos. Por ocasião de minha viagem ele estava planejando aumentar ainda mais suas plantações de algodão e tinha intenção de instalar no próprio arraial de Meia-Ponte uma descaroçadora, bem como uma fiação onde pretendia empregar as mulheres e as crianças sem trabalho. Depois de descaroçado, o algodão da região, cuja qualidade é excelente, era vendido no local a 3.000 réis a arroba. O transporte de Meia-Ponte à Bahia custava 1.800 réis a arroba, e até o Rio de Janeiro 2.000. O lucro obtido com as exportações a esse preço era tão garantido que Joaquim Alves não vacilara em se oferecer para comprar, à razão der 3.000 réis, o algodão produzido por todos os agricultores das redondezas.
Ao dedicar sua atenção a um produto que podia ser exportado com proveito, o comandante de Meia-Ponte incentivava seus compatriotas a tomar novos rumos, indicando-lhes o que devia ser feito para arrancar sua região do estado de penúria em que a mergulhara uma exportação do ouro mal orientada. Enquanto ele agia de maneira prática, vários de seus concidadãos afirmavam que só havia salvação para a província numa ideia absurda apresentada por Luís Antônio da Silva e Souza. Segundo eles, a única maneira de deter a decadência sempre crescente da província seria impedir a saída do ouro para fora de suas fronteiras, criando-se para isso uma moeda provincial. Poder-se-ia argumentar, entretanto, que se essa moeda não tivesse valor como metal não haveria força humana capaz de lhe dar algum crédito. Se, pelo contrário, ela fosse de cobre, de ouro ou de prata, acabaria saindo da província de uma forma ou outra, por mais rigorosa que fosse a proibição, como acontecem todos os dias com o ouro em pó. Uma vez fora de suas fronteiras, porém, ela só seria aceita pelo seu valor intrínseco, e em conseqüência os comerciantes de Goiás passarão a vender suas mercadorias por um preço que compense a sua desvalorização. O ouro adulterado que circula em Goiás já pode ser considerado uma espécie de moeda provincial, pois só é aceito ali, e quando o comerciante o remete para fora ele se vê obrigado a reduzi-lo ao seu valor real, purificando-o, para em seguida reajustar os seus preços de acordo com a redução de peso sofrida pelo ouro.
Depois de tantas jornadas tediosas e cansativas através dos sertões, senti-me feliz por me achar numa casa que reunia todo o conforto que a região podia oferecer, onde eu gozava de inteira liberdade e cujo proprietário, um homem esclarecido, tinha por mim toda consideração. O tempo que passei na casa de Joaquim Alves foi muito proveitoso. Meus homens fizeram uma esplêndida caçada nas margens de uma lagoa situada nas proximidades. Quanto a mim, passei para o papel uma parte dos dados que recolhera sobre vários assuntos e obtive novas informações em conversas com meu hospedeiro.
Deixei a fazenda cheio de gratidão pela excelente acolhida que me deu o seu proprietário e me dirigi a Meia-Ponte, distante dali uma légua."
Relato de viagem do naturalista francês August Saint-Hilarie durante a sua estada na Fazenda Babilônia em 1919.